terça-feira, 31 de maio de 2011

Sapatos neo-cinderelas!

Silvia Helena Rodrigues*

E preciso de um sapato. Mas não encontro, só porque ouso querer um sapato que caiba exatamente no meu pé. O que quer dizer:

- acomodar todos os meus dedos esticados e abertos
- permitir que eu consiga pisar o chão com o pé todo, inclusive o calcanhar, inclusive a borda interna do pé.

Trocando em miúdos: a frente do sapato tem que ser bem larga, mas bem larga mesmo: não vale empurrar o mindinho do pé para dentro, que eu sinto; e sem salto, porque, do contrário, você pisa só com a “bola do pé” – na expressão do mestre Kobi das saudosas aulas de Krav Magá - levantando o calcanhar para cima do salto.

Aos vinte e poucos, trinta anos, a maioria de nós já não têm os pés como eles realmente são: com os dedos esticados e separados uns dos outros, o peito do pé alongado, sem contrações que o encolham, e a sola inteira capaz de tocar o chão do calcanhar aos dedos, tanto com a borda interna quanto com a externa apoiadas no chão. Eu por exemplo costumava pisar mais com a borda externa, fato verificável pelo gasto das solas e saltos – baixos, nesse caso. E quando quase caía, me desequilibrando nas calçadas irregulares do Rio, era quase sempre porque meu pé virava para fora. O que não constitui privilégio da minha pessoa. Acontece com muitas...
Alguns fatores (e a respiração é um deles, mas essa já é uma história mais comprida) como, claro, os sapatos, deformam os nossos pés. No passado deformavam ainda mais. Na geração de nossas mães eram mais comuns os dedos em garra, os joanetes... Coisas em geral muito relevadas/irrelevantes, até marcas femininas, um pequeno preço a pagar por ser uma mulher de verdade.
Eu já ouvi de uma moça jovem que, na família dela, todas as mulheres têm os dedos dos pés em garra, hereditariamente. Ou seja, um sinal de identidade familiar entre as mulheres. Eu realmente não sei se pode ser assim, se existe essa memória no DNA que manda nos dedinhos dos pés, mas me chama atenção o fato de se poder encarar uma deformidade não como deformidade, mas como identidade. Mesmo porque deformidades têm as outras, não é? Quem de nós não criticaria amarrarem os pés das chinesas?
E o bico fino? Como fazem nossos pobres dedos para entrarem aí? No começo pode ser um pouco chato, mas chega uma hora em que não dói mais. Os dedos se conformam, fisicamente até: se juntam como podem, sobem uns por cima dos outros, se encolhem, se curvam, criam calos... Mas entram no bico fino. E o salto? O salto alto é um sério capítulo à parte. Dá a você uma elegância, um ar sexy. Tão mais elegante e sexy quanto mais alto for. Difícil abrir mão.
Esse ar elegante e sexy decorre da seguinte situação:
você pisa o chão somente com uma pequena parte da frente do seu pé – o resto da sola está no alto do salto, ou se esforçando para chegar a ele;
para que você não se desequilibre para a frente, seu corpo tem que ser suficientemente inteligente, ou malandro, para dar um jeito. Então:
contrai a musculatura das costas na altura das vértebras lombares, segurando o tronco para trás numa bela lordose que acentua (quanto mais, melhor!) a curva da coluna vertebral na altura da cintura e joga o bumbum para trás e os peitos para a frente. Observem as mulheres andando de salto, vejam os desfiles de moda, vejam, as propagandas – essa posição ficou tão legal, tão sexy, que é clássica na publicidade.
para acomodar o quê se passa entre o chão e a lombar, os joelhos rodam um pouco para dentro, fazendo com que os tornozelos, para compensar, rodem um pouco para fora. Os pés ficam meio abertos. Com o salto alto não se nota. Mas os pés habituados a andar de salto alto adquirem esse “vício” – daí a sensação do “andar de pata” quando sem salto.
Quando você quer se colocar em uma outra postura – digamos assim – fica difícil comprar um sapato. Os sapatos não foram feitos para nossos pés. Muito ao contrário, nossos pés devem se acomodar aos sapatos que fazem (quem fazem? por que fazem? seria esse um bom tema para a antropologia cultural?). Se eu chego à conclusão de que descer do salto, pisar no chão, é uma coisa saudável para minha vida....eu não encontro um sapato para comprar.
Porque também não vale um chinelão de hippie velha. Eu preciso de um sapato baixo e de bico largo, como qual eu possa andar confortavelmente e que também seja bonito, que também me deixe elegante. Seria isto ma contradição em termos, dada a postura que eu descrevi como considerada elegante? Não creio, mesmo porque também é elegante, numa outra estética válida, a postura da coluna reta e dos quadris encaixados.
Quem encontrar os novos sapatos, por favor, avise. Aposto que um bando de novas Cinderelas vão lá experimentar correndo.

Obs: as observações nos meus pés e nas posturas do corpo aqui expostas decorrem da prática da Antiginástica, técnica criada por Thérèse Bertherat.

* Silvia Helena é jornalista, escritora e faz formação em Antiginástica. Carioca, divide-se entre os escritórios do Rio e de São Paulo.




Artigo encontrado no site "Plenidade: registro da maturidade"

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